9 de dezembro de 2016

VISÕES SERTANEJAS( O BODE )


Dedicado ao ator Saint-Clair Avelar.
Encenado pela primeira vez pelo ator José Maciel da Cia Oxente de Teatro da Paraíba em 27 de março de 2016 no Teatro Lima Penante em João Pessoa. 

Beeé , beeé

Ainda tenho um coração mesmo que de bode!
Cada qual anda como pode por este mundo,
Separando o bom do  imundo em suas vidas,
Curando as feridas com as boas memórias,
Porque  nesta estória vou virar gente
E se deus consente e vocês me ouvem,
Os anjos louvem a minha vitória.
Sairei da escória de uma maldição
E não permitirei que vença o tinhoso.
Vencerei o honroso duelo com o mal
Rasparei o bigode do capeta
Quebrando o encanto do homem que virou bode.

Um grande amor tudo cega!

Não é tão ruim assim ser um animal.
Posso ver coisas invisíveis ao pobre mortal,
Mas é claro que os mosquitos e o fedor de merda
São coisas que irritam a qualquer vivente.
Passado de mão em mão ultimamente,
Nenhum de meus donos percebeu quem sou.
Largaram-me nos cercados com umas cabras
Que comi com sofreguidão infantil.
Bons tempos de menino devolvidos para sempre,
Pois se não venço este desafio  mortal
Virarei buchada no ano novo
E daí tanto fará ter tanta estória para contar.

Falava do que não podia!

Dei de brincar certo dia com um mendigo,
Que na feira esmolava exibindo suas tristezas.
Tirei a paciência e os nervos do coitado.
Manguei do seu narigão, dos pés chatos,
Da pele grossa e peluda como um asno.
Não me dei conta do cheiro de enxofre que exalava.
Continuei a zombar como pude do infeliz.
Então num clarão de pólvora sumiu
E uma voz vinda dos monturos,
Decretou que viraria o primeiro bicho que tocasse
E por infelicidade nesta mesma hora
chifrou-me um bode pai-de-chiqueiro.

Beeé, beeé

"Se quiser ser gente vai ter que tocar um pife!"
Arrematou a tenebrosa voz dos infernos.
Tocar um pife vai ser moleza,
Pois esta é a minha segunda natureza.
Sou tocador de pau e corda.
"Pois segure com os seus cascos o instrumento".
"E sopre este bafo caprino no tubo de madeira!"
Gritou o coisa ruim da ribanceira.
Mexi com o diabo por descuido
Porque tinha ele que estar no mercado
Esmolando um trocado a qualquer um?
Virei um bode solto na multidão

Sempre vale a pena amar com paixão!

Tinha ido a feira encontrar com Margarida,
Minha querida morena de olhos pretos de betume.
Era braba como a gota serena em noite fria.
Não me deixava olhar de lado para nenhum rabo de saia.
Dava-me cada beliscão que alma arrepiava.
Lá estava eu naquele estado animal
Quando vi Margarida, linda, caminhando,
Para o local do nosso encontro de amor.
Ela chegou e procurou-me ao redor
Com o seus olhos ferozes de leoa
E aos seus pés eu me esfregava
Beeé, estou aqui Margarida.

Nunca um pontapé doeu tanto!

Ela ficou ali me esperando solitária
Vi duas lágrimas descerem no seu rosto.
Esperou-me até o sol esconder-se no poente.
Depois pegou a estrada para a sua casa.
E eu fui atrás mantendo uma distancia segura.
Era uma triste e cômica visão: Margarida e o bode
Andando pela estrada: ela e ele; ele e ela.
O céu todo estrelado por testemunha derradeira.
No amor nada dói mais que o silêncio!
Eu soluçava um soluço de bode.
Ela lamentava o abandono do namorado.
Eu e margarida. Margarida e o bode.

Caminhada noite a dentro!

Chegar em casa é sempre bom!
Margarida vivia com a sua mãe em um casebre.
Gente pobre que vence cada dia com muita luta.
Eu um bicho desamparado da sorte.
Agora só  a morte  me libertaria
E foi isso que pensou aquela velha interesseira
Ao ver tão oferecido em seu terreiro.
Providenciou logo um cabresto
Perguntando a filha de quem era o animal.
Margarida respondeu  que o bicho a seguiu
E que parecia ter por ela alguma afeição.
Eu a amava até mesmo sendo um bode,
Mas o meu bigode agora era uma barbicha.
A velha então planejou matar-me.
Salgar a carne e esticar a pele
Antes que alguém aparecesse para reclamar.
Fui levado para dormir na pequena sala
Ocultado dos vizinhos e dos viajantes.
Nesta noite que parecia a ultima
Deu-me a visão de margarida nua.
Sem dar-se conta de que eu a via
Desfilou sem pudor diante de mim.
Eu dei uns berros de satisfação:
Beeé, que bunda linda!
E levei uma porretada com um tição.
Baixei os chifres em desalento
E Margarida olhando nos meus olhos
Disse: "parecem os olhos de João".
E ficou triste, tão desconsolada,
Que a velha mãe me colocou na calçada
E na manhã seguinte o destino
Segurou a mão da morte e fui vendido
Para um grupo de artistas que tocavam
Antigas melodias do sertão.

Aos poucos fui sendo respeitado.
Principalmente quando falei
Que era gente em bicho transformado.
Eles se assustaram e eu também
Quando descobrimos que eu falava.

Meus senhores, minhas senhoras!

Eu sou um bode que fala.
Nem tudo em mim esta perdido.
O grande ardil do capeta
Foi fazer me crer que eu
Não era mais que um bicho.
Agora estou aqui seguindo esta trupe
Superando as barreiras e os limites.
A cada dia mais humano sou.
Falta pouco para amear esta conta.
Tenho pressa como um infante
Tem sede de viver o grande amor.
Por mim espera margarida.

Qualquer coisa para mim basta!

Como pouco, nada reclamo.
Vou praticando em segredo
A melhor forma de tocar a flauta.
O primeiro sopro será o inicio
De um processo de renascimento.
Tenho visto tanta gente pior do que eu,
Que comportam-se como bichos.
E tanta gente pior do que os bichos,
Que se não fosse por meu grande amor,
Preferiria ficar de pai-de-chiqueiro
Reinando soberano em um cercado
Até virar comemoração num assado.

Emoções sem controle!

Eu mesmo me descontrolo a chorar.
É triste ver um bode velho soluçando.
Já sustento o flautim com minhas patas
E breve uma nota sairá pelo ar.
Sempre será tempo de sonhar.
Quando todos estiverem dormindo
Trarei a memória escondida de mim
E mais que falante serei um artista
E enquanto andando pelos sertões
Sendo exibido como um bode-papagaio,
Vencerei o desafio da maldição
E qualquer dias desses acordarei João.

Vamos vencer a preguiça!

Outro dia desses conheci uma moça,
Que já não era gente, mas cachorro!
Passou ladrando para mim impertinente.
Eu lhe falei em tom benevolente:
Não tenho nada contra a sua raça,
Porque então me agride estupidamente?
Então, ela percebendo quem eu era,
Contou-me a sua estória decadente.
Um dia agrediu ferozmente um santo
que pregava as verdades divinas.
Ele a amaldiçoou com esse castigo.
E agora ela vaga pelas ruas latindo.
Qualquer coisa me vem a mente

E eu sinto doer a minha consciência.
Doem os meus cascos  e os meus chifres.
Todo o meu corpo treme de angustia.
Nada pior que estar preso em uma cela viva.
E saber que nada se pode fazer para amansar
A realidade da natureza animal.
Estou preso em mim.
Liberto-me quando tento inutilmente
Soprar este instrumento.

Ontem sonhei
Como um só um bode
Pode sonhar:
Vendo a mim meio-homem a saltitar
Medonho por entre as pessoas.

Sou quase um sátiro!

Redimido pela música,
Que vence todo mal,
Beberei o néctar dos deuses
E quem sabe assim limpo
Dos meus erros seja mais
Que uma curiosidade feia.
Já percebo que pouco falta
Para o desenlace desta agrura
Que me atormenta.
Por fim terei de volta a minha humanidade
Para ir amar margarida com cuidado.
Sinto que agora sou de Pã um irmão.

Um dia desses vi o meu amor!

Ia com estes artistas por um caminho,
Quando vi Margarida sozinha,
Caminhando quase sem vida,
Uma tristeza tão profunda...
 Desengano,
Que rasgou a minha alma
Em quinhentos pedaços,
Se é que a minha meio alma caprina
Poderia assim ser rasgada,
Mas eu a vi tão triste e compreendi,
Que tudo abandonava em direção a outra cidade...
A sua mãe havia morrido
E ela agora era somente uma besta
Desgarrada tão perdida quanto eu,
Que a perdi por um gesto leviano.
Quantas vezes a gente não trava
Uma luta com o capeta,
Sem se dar conta da aposta sem futuro que fazemos.
Vi margarida caminhar com desalento
Por aqueles mundões de terra vermelha
E seca sem vento ou cheiro,
Nem mesmo vida ou morte.
Só uma aridez tão sem brilho,
Que mesmo o mais terrível,
Parece ser uma nuvem passageira
Diante da magnitude terrifica
Da desolação
Da terra seca

Eu sou um bode!

Beeeé e choro como gente.

Quando pude me ver
Pela primeira vez em um espelho d'água,
Senti friezas profundas.
Eu como homem nunca me havia dado conta,
O quanto é importante ser fiel a si mesmo.
Os meus olhos velaram
E vi na água rasa
O abismo de mim mesmo.
Tenho comigo que cada um
Faz o que pode para respirar
E muito pouco para compreender
A sua verdadeira natureza.
Amanhã acordarei sendo gente.

fim